quinta-feira, 19 de maio de 2011

O Deus de Paulo


O mundo foi da Poesia, nos primeiros séculos da nossa era. Repetir-se-á o milagre? Voltará o deus dos poetas contra os sábios, que só acreditam na matéria, e com ela fabricam explosivos, gases asfixiantes, máquinas pavorosas? Nesta orgia industrial moderna, paródia em ferro e vapor, da orgia pagã, o homem esta morto ou isolado do seu espírito. Existe, mas não vive. Existe a duzentos quilómetros à hora, mas com a vida parada, dentro dele. Vida inerte numa existência delirante. (...)

O homem, desviado do seu destino, que é tornar-se consciência universal, perante o Criador, mente à sua própria natureza e perde a razão de ser. Daí, a paralisia moral em que ele jaz e a velocidade que o desvaira, e leva para o túmulo. Pretende eliminar o espaço e o tempo, converter-se numa entidade fictícia, simples imagem abstracta, perpendicular a um solo vertiginoso. Pretende evaporar-se. Eis a grande sensação moderna, depois do sentimento antigo. Mas confiemos no espírito humano.

Esta civilização americana depende de materiais esgotáveis ou em quantidade limitada. A fábrica, esse templo moderno, há-de ser destruída, como o templo de Artemisa, em Éfeso, e o de Vénus, em Pafos. Templo quer dizer túmulo, casa dos mortos, que os mortos foram os primeiros deuses. Foram eles que dirigiram, para além do mundo, a atenção dos vivos. Destruída a fábrica pagã, teremos a igreja de Cristo, a confraria dos irmãos, o convívio universal e amoroso.
Confiemos no Deus de Paulo.

Teixeira de Pacoaes

segunda-feira, 16 de maio de 2011

sexta-feira, 13 de maio de 2011

O Grito do Gamo – São Patrício

Eu levanto-me hoje
Pelo imenso poder da invocação da Trindade,
Pela minha crença em que Ele é Três,
Pela minha confissão que Ele é Um,
 
O Criador da Criação.
Eu levanto-me hoje
Pelo poder do Nascimento de Cristo e do seu Baptismo,
Pelo poder da Sua Crucifixão e do Seu Enterro,
Pelo poder da Sua Ressurreição e da Sua Ascensão,
Pelo poder da Sua vinda no dia do Juízo Final.

Eu levanto-me hoje
Pelo poder do amor do Querubim,
Na obediência dos Anjos,
No serviço dos Arcanjos,
Na esperança da ressurreição minha recompensa,
Nas preces dos Patriarcas,
Nas predições dos Profetas,
Na pregação dos Apóstolos,
Na fé dos Confessores,
Na inocência das Virgens,
Nas obras dos Homens Justos.

Eu levanto-me hoje
Pelo poder do Céu:
A luz do Sol,
O brilho da Lua,
O esplendor do Fogo,
A rapidez do Raio,
A doçura do Vento,
A fundura do Mar,
A segurança da Terra,
A firmeza da Rocha.

Eu levanto-me hoje
Pelo poder de Deus em me guiar:
A força de Deus para me amparar,
A sabedoria de Deus para me ensinar,
Os olhos de Deus para olharem por mim,
Os ouvidos de Deus para me ouvirem,
A palavra de Deus para falar por mim,
A mão de Deus para me guardar,
O caminho de Deus para eu trilhar,
O escudo de Deus para me proteger,
O exército de Deus para me salvar
Das ciladas dos demónios,
Das tentações dos vícios,
De quem me queira mal,
Quer eu esteja longe ou esteja perto,
Só ou na multidão.

E hoje convoco os poderes de Deus que me defendem de todo o mal,
E não consentem que o meu corpo combata a minha alma,
E me defendem das encantações dos falsos profetas,
E me defendem das leis sinistras do paganismo,
E me defendem das leis iníquas das heresias,
E me defendem das manhas e artes da idolatria,
E me defendem do feitiço das mulheres, magos e bruxos,
E me defendem de toda a ciência que rói o corpo e rói a alma.

Hoje é Cristo o meu escudo
Contra o veneno e contra a labareda,
Contra águas profundas e contra chagas e feridas,
E assim hei-de receber a recompensa e saciar-me.

Cristo está comigo,
Cristo está à minha frente e está atrás de mim,
Cristo está em mim, Cristo está por baixo de mim e por cima de mim,
Cristo está à minha direita e à minha esquerda.
Cristo está comigo quando me deito,
Cristo está comigo quando me assento,
Cristo está comigo quando me ergo.
Cristo está no coração do homem que pensa em mim,
Cristo está nos lábios de quem fala por mim,
Cristo está nos olhos de quem me olha.

Eu levanto-me hoje
Pelo imenso poder de invocação da Trindade,
Pela minha crença em que Ele é Três,
Pela minha confissão que Ele é Um,
O Criador da Criação.
Domini est salus, Domini est salus, Christus est salus; Salus tua, Domine, sit semper nobiscum.
[Ao Senhor pertence a Salvação, ao Senhor pertence a Salvação, a Cristo pertence a Salvação; Que a Tua Salvação, Senhor, esteja sempre connosco.]

São Patrício

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

O Presépio somos nós

O Presépio somos nós
É dentro de nós que Jesus nasce
Dentro destes gestos que em igual medida
a esperança e a sombra revestem
Dentro das nossas palavras e do seu tráfego sonâmbulo
Dentro do riso e da hesitação
Dentro do dom e da demora
Dentro do redemoinho e da prece
Dentro daquilo que não soubemos ou ainda não tentamos

O Presépio somos nós
É dentro de nós que Jesus nasce
Dentro de cada idade e estação
Dentro de cada encontro e de cada perda
Dentro do que cresce e do que se derruba
Dentro da pedra e do voo
Dentro do que em nós atravessa a água ou atravessa o fogo
Dentro da viagem e do caminho que sem saída parece

O Presépio somos nós
É dentro de nós que Jesus nasce
Dentro da alegria e da nudez do tempo
Dentro do calor da casa e do relento imprevisto
Dentro do declive e da planura
Dentro da lâmpada e do grito
Dentro da sede e da fonte
Dentro do agora e dentro do eterno

José Tolentino Mendonça

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Sobre um Poema

Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
- a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.

- Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
- E o poema faz-se contra o tempo e a carne.

Herberto Helder

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Dia de todos os Santos


Hoje é dia de todos os santos: dos que têm auréola
e dos que não foram canonizados.
Dia de todos os santos: daqueles que viveram, serenos
e brandos, sem darem nas vistas e que no fim
dos tempos hão-de seguir o Cordeiro.
Hoje é dia de todos os Santos: santos barbeiros e
santos cozinheiros, jogadores de football e porque
não? comerciantes, mercadores, caldeireiros e arrumadores
(porque não arrumadoras? se até
é mais frequente que sejam elas a encaminhar o espectador?)
Ao longo dos séculos, no silêncio da noite e à
claridade do dia foram tuas testemunhas; disseram sim/sim e não/não; gastaram palavras, poucas, em rodeios, divagações. Foram teus
imitadores e na transparência dos seus gestos a
Tua imagem se divisava. Empreendedores e bravos
ou tímidos e mansos, traziam-te no coração,
Olharam o mundo com amor e os
homens como irmãos.
Do chão que pisavam
rebentava a esperança de um futuro de justiça e de salvação
e o seu presente era já quase só amor.
Cortejo inumerável de homens e mulheres que Te
seguiram e contigo conviveram, de modo admirável:
com os que tinham fome partilharam o seu pão
olharam compadecidos as dores do
mundo e sofreram perseguição por causa da Justiça
Foram limpos de coração e por isso
dos seus olhos jorrou pureza e dos seus lábios
brotaram palavras de consolação.
Amaram-Te e amaram o mundo.
Cantaram os teus louvores e a beleza da Criação.
E choraram as dores dos que desesperam.
Tiveram gestos de indignação e palavras proféticas
que rasgavam horizontes límpidos.
Estes são os que seguem o Cordeiro
porque te conheceram e reconheceram e de ti receberam
o dom de anunciar ao mundo a justiça e a salvação.

Maria de Lourdes Belchior

in: http://www.snpcultura.org/umbrais_index.html#2010_11_01

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

“Os dias de Job”

Às vezes rezo

sou um cego e vejo

as palavras o reunir

das sombras


às vezes nada digo

estendo as mãos como uma concha

puro sinal da alma

a porta


que queria que batesses

tomasses um por um os meus refúgios

estes dedos

inquietos na ignorância

do fogo


pois que tempo abrigará

os anjos

e que dia erguerá todo o sol

que há nas dunas


por isso

às vezes chove quando rezo

às vezes quase neva

sobre o pão


José Tolentino Mendonça, “A noite abre os meus olhos”, 29.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Ingrina

"O grito da cigarra entre a tarde a seu cimo e o perfume do oregão invade a felicidade. Perdi a minha memória da morte da lacuna da perda do desastre. A omnipotência do sol rege a minha vida enquanto me recomeço em cada coisa. Por isso trouxe comigo o lírio da pequena praia. Ali se erguia intacta a coluna do primeiro dia - e vi o mar reflectido no seu primeiro espelho. Ingrina.
É esse o tempo a que regresso no perfume do oregão, no grito da cigarra, na omnipotência do sol. Os meus passos escutam o chão enquanto a alegria do encontro me desatera e sacia. O meu reino é meu como um vestido que me serve. E sobre a areia sobre a cal e sobre a pedra escrevo: nesta manhã eu recomeço o mundo."

Sophia de Mello Breyner Andresen