quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

O Presépio somos nós

O Presépio somos nós
É dentro de nós que Jesus nasce
Dentro destes gestos que em igual medida
a esperança e a sombra revestem
Dentro das nossas palavras e do seu tráfego sonâmbulo
Dentro do riso e da hesitação
Dentro do dom e da demora
Dentro do redemoinho e da prece
Dentro daquilo que não soubemos ou ainda não tentamos

O Presépio somos nós
É dentro de nós que Jesus nasce
Dentro de cada idade e estação
Dentro de cada encontro e de cada perda
Dentro do que cresce e do que se derruba
Dentro da pedra e do voo
Dentro do que em nós atravessa a água ou atravessa o fogo
Dentro da viagem e do caminho que sem saída parece

O Presépio somos nós
É dentro de nós que Jesus nasce
Dentro da alegria e da nudez do tempo
Dentro do calor da casa e do relento imprevisto
Dentro do declive e da planura
Dentro da lâmpada e do grito
Dentro da sede e da fonte
Dentro do agora e dentro do eterno

José Tolentino Mendonça

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Sobre um Poema

Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
- a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.

- Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
- E o poema faz-se contra o tempo e a carne.

Herberto Helder

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Dia de todos os Santos


Hoje é dia de todos os santos: dos que têm auréola
e dos que não foram canonizados.
Dia de todos os santos: daqueles que viveram, serenos
e brandos, sem darem nas vistas e que no fim
dos tempos hão-de seguir o Cordeiro.
Hoje é dia de todos os Santos: santos barbeiros e
santos cozinheiros, jogadores de football e porque
não? comerciantes, mercadores, caldeireiros e arrumadores
(porque não arrumadoras? se até
é mais frequente que sejam elas a encaminhar o espectador?)
Ao longo dos séculos, no silêncio da noite e à
claridade do dia foram tuas testemunhas; disseram sim/sim e não/não; gastaram palavras, poucas, em rodeios, divagações. Foram teus
imitadores e na transparência dos seus gestos a
Tua imagem se divisava. Empreendedores e bravos
ou tímidos e mansos, traziam-te no coração,
Olharam o mundo com amor e os
homens como irmãos.
Do chão que pisavam
rebentava a esperança de um futuro de justiça e de salvação
e o seu presente era já quase só amor.
Cortejo inumerável de homens e mulheres que Te
seguiram e contigo conviveram, de modo admirável:
com os que tinham fome partilharam o seu pão
olharam compadecidos as dores do
mundo e sofreram perseguição por causa da Justiça
Foram limpos de coração e por isso
dos seus olhos jorrou pureza e dos seus lábios
brotaram palavras de consolação.
Amaram-Te e amaram o mundo.
Cantaram os teus louvores e a beleza da Criação.
E choraram as dores dos que desesperam.
Tiveram gestos de indignação e palavras proféticas
que rasgavam horizontes límpidos.
Estes são os que seguem o Cordeiro
porque te conheceram e reconheceram e de ti receberam
o dom de anunciar ao mundo a justiça e a salvação.

Maria de Lourdes Belchior

in: http://www.snpcultura.org/umbrais_index.html#2010_11_01

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

“Os dias de Job”

Às vezes rezo

sou um cego e vejo

as palavras o reunir

das sombras


às vezes nada digo

estendo as mãos como uma concha

puro sinal da alma

a porta


que queria que batesses

tomasses um por um os meus refúgios

estes dedos

inquietos na ignorância

do fogo


pois que tempo abrigará

os anjos

e que dia erguerá todo o sol

que há nas dunas


por isso

às vezes chove quando rezo

às vezes quase neva

sobre o pão


José Tolentino Mendonça, “A noite abre os meus olhos”, 29.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Ingrina

"O grito da cigarra entre a tarde a seu cimo e o perfume do oregão invade a felicidade. Perdi a minha memória da morte da lacuna da perda do desastre. A omnipotência do sol rege a minha vida enquanto me recomeço em cada coisa. Por isso trouxe comigo o lírio da pequena praia. Ali se erguia intacta a coluna do primeiro dia - e vi o mar reflectido no seu primeiro espelho. Ingrina.
É esse o tempo a que regresso no perfume do oregão, no grito da cigarra, na omnipotência do sol. Os meus passos escutam o chão enquanto a alegria do encontro me desatera e sacia. O meu reino é meu como um vestido que me serve. E sobre a areia sobre a cal e sobre a pedra escrevo: nesta manhã eu recomeço o mundo."

Sophia de Mello Breyner Andresen

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

«Aquilo de que mais precisamos neste momento da história é de homens que, por meio de uma fé iluminada e vivida, tornem Deus credível neste mundo. O testemunho negativo de cristãos que falavam de Deus e viviam contra Ele ensombrou a imagem de Deus e abriu a porta à incredulidade. Precisamos de homens que mantenham o olhar voltado para Deus e aí aprendam a verdadeira humanidade. Temos necessidade de homens cujo intelecto seja iluminado pela luz de Deus e aos quais Deus abra o coração, de modo a que o seu intelecto possa falar ao intelecto dos outros e o seu coração possa abrir o coração dos outros. Só através de homens tocados por Deus, Deus pode voltar para junto dos homens.»

Joseph Ratzinger, Subiaco, 1 de Abril de 2005

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Caminhar com... Papa Bento XVI

"No nosso tempo em que a fé, em vastas zonas da terra, corre o perigo de apagar-se como uma chama que já não recebe alimento, a prioridade que está acima de todas é tornar Deus presente neste mundo e abrir aos homens o acesso a Deus. Não a um deus qualquer, mas àquele Deus que falou no Sinai; àquele Deus cujo rosto reconhecemos no amor levado até ao extremo (cf. Jo 13, 1) em Jesus Cristo crucificado e ressuscitado. Queridos irmãos e irmãs, adorai Cristo Senhor em vossos corações (cf. 1 Ped 3, 15)! Não tenhais medo de falar de Deus e de ostentar sem vergonha os sinais da fé, fazendo resplandecer aos olhos dos vossos contemporâneos a luz de Cristo, tal como a Igreja canta na noite da Vigília Pascal que gera a humanidade como família de Deus."


BENTO XVI - Fátima, 12 de Maio 2010

terça-feira, 1 de junho de 2010

"Estas mãos"


Lembro-me disto: o bispo tomou as minhas mãos trémulas nas suas mãos confiantes. Depois impuseram as mãos na minha cabeça, primeiro as do bispo, depois muitas dos padres que, por este gesto, me tornaram um deles. Pouco depois o bispo ungiu-as, e não poupou no óleo; cheiraram a crisma o dia todo.

Rapidamente as minhas mãos foram usadas para abraçar, estendidas para consagrar, expostas em súplica e postas a trabalhar na distribuição da comunhão. De seguida foram usadas para benzer filhos e pais, família e amigos, e estranhos também, que as agarravam e as beijavam porque se tinham tornado bênção.

(…) Ungiram bebés e santos moribundos, absolveram, confortaram, fortaleceram; benzeram casamentos e fecharam-se em oração a pedir ajuda durante reuniões infindáveis. (…)

Apontaram o caminho para o Céu e para a casa de banho. Apanharam lixo no parque de estacionamento e comida debaixo dos bancos da igreja. Dactilografaram orações dos fiéis no Sábado à tarde e cartas para o boletim paroquial às terças. Estas mãos viraram inúmeras páginas de breviários, leccionários, bíblias, memorandos, textos teológicos e espirituais, folhetos, jornais e relatórios de contas de escolas que, de tempos a tempos, não eram positivos como se esperava.

Entregaram alianças a noivos nervosos (…). Seguraram bolas de bingo e rifas vencedoras, documentos civis e religiosos, bênçãos apostólicas e carteiras perdidas, pratos de esparguete e lanternas quando disparou o alarme na igreja.

Estas mãos contaram hóstias e ofertórios, acenderam velas e deitaram incenso em turíbulos, passaram contas de rosário e fizeram o sinal da cruz com a custódia. Assinaram memorandos e petições, certificados e cartas, incluindo muitas a pedir dinheiro, demasiados cheques e muito poucos talões de depósito. Gesticularam loucamente em alturas quando as palavras me faltaram, ou se perderam, ou estavam na linguagem errada, ou não eram suficientemente claras para explicar um ponto que me parecia muito simples.

O seu toque acalmou os trémulos, parou os impetuosos, limpou as lágrimas, dispensou preocupações, até as minhas. Nas muitas vezes em que estava sem ideias e não sabia o que fazer, estas mãos apoiaram a minha cara e coçaram a minha cabeça.

Agora as minhas mãos estão gastas, com marcas e altos e calos. Devia pôr-lhes creme e dar-lhes descanso, recompensá-los pelo que já fizeram. Mas não o farei, não posso, ainda há tanto por fazer.

Monsenhor Mike Heher, Vigário-geral da Diocese de Orange, Califórnia, EUA
In The Tablet, 01.05.2010
Trad.: Filipe d'Avillez
© SNPC (trad.) | 31.05.10

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Restolho - Mafalda veiga



Geme o restolho, triste e solitário
a embalar a noite escura e fria
e a perder-se no olhar da ventania
que canta ao tom do velho campanário

Geme o restolho, preso de saudade
esquecido, enlouquecido, dominado
escondido entre as sombras do montado
sem forças e sem cor e sem vontade

Geme o restolho, a transpirar de chuva
nos campos que a ceifeira mutilou
dormindo em velhos sonhos que sonhou
na alma a mágoa enorme, intensa, aguda

Mas é preciso morrer e nascer de novo
semear no pó e voltar a colher
há que ser trigo, depois ser restolho
há que penar para aprender a viver

e a vida não é existir sem mais nada
a vida não é dia sim, dia não
é feita em cada entrega alucinada
prá receber daquilo que aumenta o coração

Geme o restolho, a transpirar de chuva
nos campos que a ceifeira mutilou
dormindo em velhos sonhos que sonhou
na alma a mágoa enorme, intensa, aguda

Mas é preciso morrer e nascer de novo
semear no pó e voltar a colher
há que ser trigo, depois ser restolho
há que penar para aprender a viver

e a vida não é existir sem mais nada
a vida não é dia sim, dia não
é feita em cada entrega alucinada
prá receber daquilo que aumenta o coração

sexta-feira, 21 de maio de 2010

A paz sem vencedor e sem vencidos

Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos
Que o tempo que nos deste seja um novo
Recomeço de esperança e de justiça.
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Erguei o nosso ser à transparência
Para podermos ler melhor a vida
Para entendermos vosso mandamento
Para que venha a nós o vosso reino
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Fazei Senhor que a paz seja de todos
Dai-nos a paz que nasce da verdade
Dai-nos a paz que nasce da justiça
Dai-nos a paz chamada liberdade
Dai-nos Senhor paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Sophia de Mello Breyner Andresen

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Carta aberta ao Papa e aos seus perseguidores

Sei quem és, Papa Bento. E por isso te escrevo.
Sei que te atacam. Não por ti. Só gente desinformada acreditaria poder encontrar, com verdade, na tua pessoa, uma falta de coerência como a que propalam, qualquer conivência com um «crime hediondo» como tu próprio lhe chamas.

Atacam-te a ti porque os confunde a apaixonada busca da verdade e do bem que é a tua vida. Sempre foi assim. Há pessoas que se transformam em perseguidoras porque não aguentam aqueles que possuem um coração enorme e uma inteligência soberana, abertos a todos; e que não procuram o poder mesquinho, a glória efémera dos aplausos hipócritas, a fama conseguida em atropelo da honestidade.
Atacam-te a ti — não a mim — porque és grande demais. Mas não te atacam por ti. Atacam-te porque és Cristo. Perseguem-te como perseguiram e perseguem Cristo.

Em ti e nos cristãos. Como se tu ou Ele fossem os donos das consciências, da liberdade, da história pessoal de cada um e da Igreja. E da humanidade. Como se todos nós, não podendo suportar — cobardes! — as próprias culpas, te atirássemos com elas num exercício absurdo e infantil de branqueamento de responsabilidade. Atacam-te como o tolo dispara à lua, pensando apagar nela a luz do sol. Ou — talvez pior — como o néscio desfere um golpe fatal no seu próprio corpo, julgando vingar-se. Atacam-te como se sem ti, sem a Igreja, o mundo florescesse: chegassem por fim a esta terra a paz, a justiça, a liberdade e desaparecessem o medo e a morte.

Perseguem-te para disfarçar a sua falta de ideias, de meios, de eficácia para construir. Porque sabem que tens — de Cristo — as metas altas, maiores ainda do que a nossa capacidade de desejar; e remédio para as nossas ansiedades e angústias; e manifestas, além disso, o respeito mais delicado por todos; e acolhes o bom contributo de quem não pensa como tu. Sempre foi assim. Atacam-te sabendo que não tens exércitos, ódios, mordomias. Como fizeram — fizemos e fazemos — com Cristo: desarmado, querido pelos pobres e perseguidos, trabalhador infatigável da causa da justiça, denunciador da hipocrisia então reinante. E não reparam que fazem o serviço aos poderosos, aos que esmagam os outros com tal de chegar a uma posição triunfal, aos que negam as liberdades, aos abusadores, também sexuais. Não reparam que são estes que tu fustigas com a tua palavra e o teu exemplo. São estes os que beneficiam com a perseguição que outros te movem: porque assim não têm o trabalho de te atacar — deixam-no aos mesquinhos, aos desapreensivos, aos ignorantes, aos ingénuos. Mas não se preocupem os atacantes, os perseguidores do Papa e da Igreja.

A vossa vozearia não desviará Bento da sua batalha, já antiga, a favor das crianças indefesas, da justiça social, do desenvolvimento sustentável, das vítimas inocentes da pedofilia… Se esta causa urgente e ingente é realmente o que vos importa, podem contar com ele.

Cristina Líbano Monteiro (Assistente da Faculdade de Direito de Coimbra)

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Caminhar com... Rainer Maria Rilke

Apaga-me os olhos, ainda posso ver-te.
Tranca-me os ouvidos, ainda posso ouvir-te,
e sem pés posso ainda ir para ti,
e sem boca posso ainda invocar-te.
Quebra-me os ossos, e posso apertar-te
com o coração como com a mão,
tapa-me o coração, e o cérebro baterá,
e se me deitares fogo ao cérebro,
hei-de continuar a trazer-te no sangue.


Rainer Maria Rilke; O Livro das Horas

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

"Acontece por vezes que o caminho é belo"

Georges Rouault

http://www.snpcultura.org/tvb_rouault_noite_redencao.html